pierre por pierre
Introdução ao Diário Do Rio Negro de Pierre Restany
O diário se inicia no dia 14 de julho e termina em 15 de agosto de 1978. É escrito à mão, sem quase rasura, a bordo do barco durante a subida do Rio Negro, e nele se misturam considerações pessoais às reflexões históricas e filosóficas. Restany encontra sempre um momento para escrever durante a viagem, malgrado as condições difíceis e desconfortáveis da travessia do rio, como a umidade, o calor e os mosquitos, além de um machucado no pé que o faz sofrer.
"A vida a bordo, dadas as condições rústicas de conforto, é uma questão de disciplina livremente consentida. Existe neste autocontrole uma dimensão existencial que se manifesta em si, para além do exercício moral do respeito pelo outro. ( p.47)". Como nos diários de antropólogos como Malinowski ou Leiris, encontra-se aí ainda momentos de desespero, quando sente nostalgia da velha Europa: "São 3h30 da tarde e uma sonolência sem limites se apodera de mim… Afinal, para que? Para nada… "
Para, em seguida se recuperar: "O Humanismo tecnológico do qual me tornei defensor na minha teoria do Novo Realismo repousa no sentido de uma natureza moderna de essência industrial e urbana. O amor pela natureza poderia se constituir numa espécie de contraponto dialético no seio da natureza urbana. Embora não tenhamos aprendido a amar o suficiente a cidade moderna, já desaprendemos a respeitar a natureza, a amá-la em si mesma"
Excertos do Diário do Rio Negro de Pierre Restany - Seleção Regina Jehá
14 de julho de 1978
14 horas - Voo Paris-Caiena-Manaus
Este é o 4. diário de bordo que escrevo, e o 2. referente ao Brasil.
**Quarta feira, 19 de julho. Sul das Ilhas Urubianu, em frente de Moura
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“A tempestade e o vento fizeram a temperatura baixar bruscamente ontem à noite. A umidade fria penetra nossos ossos. Estou feliz, muito feliz por trazido meu casaco impermeável: faz mais frio que em Paris nos piores dias da última primavera. E dizer que estamos quase à altura do equador. (...)”
“Frans e André (Palluch) terminaram de partir com a canoa a motor para filmar o pôr-do-sol sobre o rio, cujas leito é majestoso neste lugar. A fascinação que exerce a floresta amazônica nesta subida do rio Negro é de ordem quase mágica. Custo a acreditar que deixei Paris apenas 6 dias atrás, tal meu sentimento de estar transportado a um ambiente eletrizante e arrebatador. Vista do rio, a floresta é um espetáculo continuo e mutável, em todas as gradações da luz do dia, da aurora ao crepúsculo, e da noite com a luz da lua. Ontem foi noite de lua cheia. Noite mágica, um pouco louca... quem poderia definir exatamente os efeitos da atração de nosso satélite sobre nossa psicologia. Penso em Serge Hutin e morro de rir mentalmente. Eu imagino sua fala sobre o xamanismo indígena o os ritos de lua cheia na noite do Rio Negro. Que paradoxo esta natureza ao mesmo tempo tão forte e tão fraca, tão espetacular e tão hostil. (...)”
“A empreitada do pintor Sepp e do escultor Frans não poderia ser mais louca. Testemunhar a Amazônia tentando escapar do círculo vicioso do provincialismo, confiando na universalidade da linguagem da arte e no valor de belas imagens, expressão de uma realidade intensamente vivida no plano físico e emocional.”
Quinta feira, 20 de julho. Moura-Carvoeiro
“São 8 horas da manhã e nós cruzamos ao largo da vila de Moura. Um ancoradouro, uma igreja e umas 20 casas espalhadas ao longo do rio. Esta relativa densidade populacional surpreende. O rio parece bruscamente habitado, não estamos mais sós, é preciso dividir com outros. Em 5 minutos, a cidade de Moura desaparece de nosso olhar.
A vida a bordo, consideradas as condições bem rústicas de conforto, é uma questão de disciplina consentida. Há neste autocontrole uma condição essencial que se manifesta por si, para além do exercício moral do respeito ao outro. Lembro-me de uma discussão com Dino Buzzati sobre o exército, na época dos primeiros escândalos sobre os serviços de informação italianos. Buzzati me confiou: “Um dos períodos mais harmoniosos de minha vida foi o do meu serviço militar, que terminei como tenente de reserva”. E me explicou o equilíbrio que proporciona à consciência individual a prática da disciplina, a compreensão, a aceitação, a aplicação de regras coletivas. (...)”
“Quando falo da natureza como disciplina, entendo isto da maneira como Buzzati amava, aceitava a disciplina militar. Não como servitude mas como revelador sensível, um catalizador da visão.”
Sábado, 22 de julho. Ilha de Maporé-Tomar
“Durante o café da manhã, Frans contempla a paisagem panorâmica da floresta que se desenrola diante de nós na beira do rio. A paisagem muda, as árvores se tornam maiores. A estrutura dos troncos, dos galhos e ramagens emergem cada vez mais cheios de folhagens. ‘Como Mondrian pode passar da árvore à verticalidade-horizontalidade do quadrado’, pergunta ele fazendo alusão às pinturas do museu Kröller-Müller de Otterlo que ilustram a evolução do pintor neoplástico. Foi o implacável poder de análise de Mondrian que empurrou o sistema perceptivo às suas consequências extremas: a natureza como ponto de referência de uma estrutura invariante. Sinto que Frans se sente constantemente atraído e repelido por esta manifestação do espirito do sistema. Ele combate a tentação analítica através da abertura emocional, opõe o êxtase sensível ao espírito da geometria. Frans conheceu Maria Martins, escultora surrealista brasileira, embaixadora do Brasil em Paris e a Nova Iorque, que introduziu Mondrian na América durante a guerra. Esta grande dama foi a artesã do reconhecimento in extremis (Mondrian morre em 1944 em NY) da obra do teórico do neoplasticismo, ignorado durante seus vinte anos de existência parisiense. Frans me conta as pressões que Maria Martins precisou fazer sobre Alfred Barr para que ele não apenas aceitasse um Mondrian mas ainda que o fizesse pendurar nas paredes do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. (...)”
“No fundo, Frans sabe muito bem porque Mondrian passou da árvore ao quadrado. Se ele me propõe a questão é porque precisa, de alguma maneira, exorcizar o problema, a tentação analítica. Penso na sensação que tive ontem, de participar, enquanto testemunha escolhida em virtude de profundas afinidades eletivas, a uma viagem de iniciação ao nível da consciência perceptiva.”
“Enquanto falamos, Frans e eu, nosso olhar pousa sobre Sepp que fotografa: sua expressão é de deslumbrado êxtase, um arrebatamento que dá aos seus traços um ar ingênuo, juvenil, feliz de viver. Esta alegria da percepção é fruto do método. Em uma tal prática da disponibilidade perceptiva, cada instante conta, tanto o da espera quanto o do clique. Frans e Sepp vivem em simbiose afetiva com suas câmeras. Não largam nunca seus aparelhos, da aurora ao crepúsculo. Durante as refeições, a câmera está sempre ao alcance das mãos. (...)”
“O gesto sistemático e repetitivo revela seu significado na medida em que, como parte, se identifica ao Todo.
Pierre Restany, Journal du Rio Negro- Vers le Naturalisme Integral, Editions Wild Project
Sobre Restany, Prefácio de Gilles A. Tiberghien
“Pierre Restany ( 1930-2003) é o mais importante crítico de arte do após-guerra na França. Em 1960, ao lado de Yves Klein, Arman e outros, foi o teórico-propulsor do grupo dos Novos Realistas. No verão de 1978, Pierre Restany embarca para o coração da Amazônia com os artistas brasileiros Frans Krajcberg e Sepp Baendereck. Esta expedição por barco ao longo do Rio Negro se revela uma experiência humana e sensorial perturbadora e será para Restany a ocasião de uma revolução teórica.
O diário do Rio Negro dá nascimento ao Manifesto do Naturalismo Integral. Retornando sobre os princípios fundadores do Novo Realismo, Restany afirma que é a questão da natureza que se coloca agora no cerne das apostas artísticas e culturais. Enfrentando mosquitos e ressacas, ele convida o Ocidente do século 21 a uma “Segunda Renascença”.
Três decênios mais tarde, este texto profético e divertido se impõe como um clássico, que nos revela Restany “au naturel”.”
biografia
Pierre Restany, nascido em 1930, passou sua infância no Marrocos e realizou seus estudos universitários na França, Itália e Irlanda onde se formou em literatura, estética e história da arte. Vinte e cinco anos de atividades passionais e muitas vezes polêmicas fazem dele uma figura fora do comum no cenário artístico. É conhecido em todo o mundo devido às suas diversas contribuições para publicações de arte e mídia audiovisual, por ter realizado inúmeras palestras em universidades e museus, e também por compor os júris de inúmeras mostras internacionais de arte.
Seu encontro com Yves Klein em 1955 foi de uma importância capital para ele. Klein deu a ele a oportunidade de reconsiderar totalmente os valores da linguagem. Percebendo as aberturas e limitações do expressionismo abstrato americano e da abstração lírica européia, ele tirou suas próprias conclusões em seu livro “Lyrisme et Abstraction”. Essa reflexão levou-o gradualmente a construir sua teoria do Novo Realismo - a descoberta de um sentido moderno da natureza e um retorno a um humanismo do objeto industrial. O grupo de Novos Realistas (Arman, César, Christo, Deschamps, Dufrêne, Hains, Klein, Raysse, Rotella, Niki de Saint-Phalle, Spoerri, Tinguely, Villeglé) que fundados por Restany em Paris e em Milão em 1960, ilustra esta “révolution du regard”, esta nova abordagem para o mundo contemporâneo da cidade, fábrica ou rua.
O ano de 1968 proporcionou-lhe a oportunidade de construir uma perspectiva crítica sobre o quadro sociológico da arte contemporânea. O “Petit Livre Rouge de la Révolution Picturale” e o “livre Blanc de l'Art Total” ilustram as preocupações na instantaneidade do momento.
Dez anos depois, escreveu “L'Autre Face de I'Arte”, um ensaio publicado em parcelas mensais no Domus de janeiro a setembro de 1978. Neste trabalho, ele novamente descreve a história da função desviante na arte contemporânea, do Futurismo ao Dadaísmo, até a problemática da arte conceitual, através da aventura expressiva da arte-objeto, desde a conquista de sua significativa autonomia até sua desmaterialização constante.
Polônia, Tchecoslováquia, Japão, Estados Unidos, Irã, Amazônia, Austrália, etc. Pierre Restany é um viajante infatigável em todo o mundo, de leste a oeste, atraído pela sua curiosidade em relação a tudo o que está sendo feito ou tentado em qualquer lugar.
Em julho e agosto de 1978, com Sepp Baendereck e Frans Krajcberg, ele subiu o Rio Negro, o principal tributário do norte da Amazônia, de Manaus à fronteira venezuelana. A experiência foi um profundo choque emocional para ele, enquanto ampliava sua reflexão sobre o moderno sentido da natureza. No Manifesto do Rio Negro, redigido no coração da floresta amazônica, faz-se referência a um naturalismo integral, uma disciplina fundamental do pensamento e um método de recarga afetiva da sensibilidade: uma resposta objetiva, sintética e planetária às questões colocadas pela arte contemporânea em relação a sua existência e propósito; uma chave para tentar ver com mais clareza no meio do caos conceitual de hoje, enfrentando assim, positivamente, a dupla conclusão no horizonte imediato de nossa consciência - o resumo de um século e de um milênio.